terça-feira, 16 de junho de 2009

Fila do leite


- E essa fila que não anda! Diziam uns.
-Também têm gente com dois, três cartões! Lembravam outros. A fila quase alcançava o portão da escola Cel. Solon, onde três vezes por semana (segundas, quartas e sextas) é feita a entrega do leite às famílias carentes escritas no programa do governo. Algumas dessas pessoas escritas pegam o leite com dois cartões, sendo um o da própria, enquanto que o outro é de alguém que não quis vir, estava doente ou no mínimo não quis se aventurar a encarar a tensão na fila.
- Tem gente cortando a fila! Berrou um senhor de cabelos grisalhos.
- Também vou cortar, dona Francisca de seu Amâncio cortou! Explodiu uma senhora com cara de poucos amigos, isto é, amigas.
- Hei, por favor, organize essa fila direito, fica todo mundo ao redor do birô, como vou saber de quem é a vez! Tome carão de Jacinta, esta adora esculachar alguém, pisou em falso, é com ela mesma.
A fila já se tornou um ponto de encontro pra muitas mães e pais que esperam ansiosamente pelos dias de fila, cá pra nós, não sei se essa ansiedade é pela necessidade do leite ou para ter o prazer de compor e fazer parte da tão sagrada fila.
Pra termos uma idéia da importância da fila, há algumas mães que se preparam antecipadamente para a fila, com comentários do tipo:
- Tem leite hoje, comadre Josefa?
- Creio que sim, hoje né quarta? Vamos confirmar com dona Jacinta.
E lá vão elas, mesmo já sabendo que é dia de leite, mas vão assim mesmo, só para terem o gostinho antecipado da fila. Quando chegam para confirmar com Jacinta, coitadas, levam de imediato o primeiro batido, digo o primeiro porque o segundo é mais tarde, na fila.
- Hoje né quarta? Vocês sabem mais que eu que hoje tem leite, vem perguntar por que no mínimo não tem o que fazer.
E lá vão elas, mesmo de cabeça baixo, voltam feliz da vida, pois foi confirmado que hoje é dia de leite, ou seja, dia de fila.
E assim, no dia do leite, forma-se a tão esperada fileira, onde todo mundo, com suas sacolas e cartões em mão, fala, conversa, grita, assobia, menino chora, rir, esperneia, quanto às mães, elas são de uma variedade incrível, tem mãe de barriga, mãe sem, mas que já fez a arte, mãe com a arte nos braços, mãe com a arte nos braços e na barriga, alem daquelas que tem um no cós da saia, outro nos braços e um em pensamentos. Fora as idosas, os idosos, os adolescentes e aqueles que não tem nada ver com a fila, estão lá só para curiar, em fim, o movimento parece uma feira de frutas em pleno movimento de compras.
É nesta hora que muitas senhoras e até senhores, porque não, aproveitam para atualizarem seus conhecimentos, aproveitando que a fila fica na escola:
Matemática – Quantos litros são hoje Marisa? Parece que apenas dois.
Física – Essa tua sacola vai se rasgar com o peso! - Será mulher?
Geografia – Esse leite vem donde mesmo, hem?
- Sei lá, parece que vem de Mossoró.
História – Quarta-feira da semana passada eu não vim e perdi o leite, estava doente.
- E foi mulher, se eu soubesse tinha ido pegar teu cartão.
Em fim, para encerrar.
Sociologia e Língua portuguesa – Mulher, sabias tu que a filha de dona Telmina já não é mais moça?
- Não digas, é mesmo, quem te disse? E por aí a fila vai aos troncos e barrancos em sua caminhada.
Nesta mesma fila há também frases de agressões do tipo:
- Essa bonitinha chegou agora e já recebeu o leite, era só o que faltava mesmo! Esta que chegou por último e sai por primeiro, finge que nem ouviu e vai toda sorridente, o que me parece, provocar mais ainda a fila.
Mas na fila tem também pessoas educadas, que oferece a vez aos mais velhos, oferece ajuda quando se rompe alguma sacola derrubando o leite no pátio, na saída, alguns oferecem caronas,...
O que mais me impressiona na fila do leite, não são os comentários (alguns até graves, como por exemplo – Estão desviando o leite, hoje só distribuíram um litro), mas sim à transformação que acontece nos semblantes das pessoas que, na fila, antes de receber o precioso líquido, estão tristes, cansadas, morosas, enfastiadas, todavia quando obtêm o leite, saem embriagadas de tanta alegria, como se nada tivesse dito, ouvido, visto, sofrido ou feito durante a fila. E ainda com sorriso no rosto, olham para traz, já com uma pontinha de saudade.
Como diz a banda forrozeira Fala Mansa, sai rindo à toa.
E assim, caros leitores, é todo santo dia de leite, isto é, santo dia de fila.

Prof. Ronaldo Josino